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Na manhã de 31 de janeiro um anestesista de 27 anos foi detido na própria residência, em Buenos Aires, por bater em uma jovem de 20 anos até desfigurá-la. Os dois haviam fumando crack com um cachimbo caseiro por cinco horas. No depoimento perante o juiz, o profissional, ex-coordenador de anestesiologia pediátrica do Hospital Militar Central de Buenos Aires, atribuiu os ataques aos efeitos da droga, assegurou que é viciado há cinco anos, e que gostaria de se internar para reabilitação. No momento ele permanece detido, mas por posse de droga: na casa do médico foram encontradas 3,1 gramas de cocaína e 0,88 gramas de maconha, além de diversos medicamentos psicoativos.
Para o pai da jovem, o médico deveria permanecer detido por muito tempo. E não apenas pelos antecedentes violentos. "Quantas vezes ele participou de cirurgias drogado? O que pensarão agora os pacientes atendidos por ele?", questionou. A mãe da vítima também sustenta que seria um perigo ele continuar exercendo a medicina. Nos canais de televisão locais foi debatida a necessidade da realização de controles antidoping de rotina nos médicos, como é feito com pilotos de avião.
A preocupação não é nova, mas reacendeu nos últimos anos. Ela foi levantada inclusive no próprio âmbito médico. Em uma coluna para o Medscape, Arthur Caplan, professor de bioética no Langone Medical Center da University of New York, reconheceu que o tema é "muito, muito controverso". Mas defendeu que "se vamos colocar à frente a segurança do paciente, e a segurança se tornará parte da qualidade do atendimento, temos de aceitar a ideia de que o controle de drogas tem lugar em nossos centros de saúde, e que médicos e enfermeiros deverão cumpri-lo".[1]
Em um extenso ensaio para o Seton Hall Law Review, a estudante de direito Angelica Halat recordou que o Juramento de Hipócrates, na versão de Louis Lasagna de 1964 (usada nos países anglo-saxões) inclui as frases "devo ter especial cuidado com assuntos sobre a vida e a morte" e "recordarei que sou um membro da sociedade com obrigações especiais com meus semelhantes". Angelica acrescentou: "Um exame de drogas ao acaso duas vezes ao ano pode ser instrumental para salvar vidas, e é seguramente uma faceta das 'obrigações especiais' que os profissionais de saúde têm com seus semelhantes".[2]
O quão frequente é o problema?
Por conta da sensibilidade do tema, poucos estudos examinaram a prevalência de dependência de drogas recreativas em profissionais de saúde na América Latina.
As sociedades médicas também são reticentes em discutir a questão publicamente. Autores argentinos, por exemplo, relataram uma prevalência elevada de comportamentos aditivos em profissionais em hospitais, mas limitaram a análise a tabagismo, consumo de álcool, alimentação e automedicação.[3]
"Pode-se dizer que é um tema invisível", disse ao Medscape Graciela Touzé, professora e pesquisadora da Facultad de Ciencia Sociales de la Universidad de Buenos Aires e presidente da associação civil Intercambios, que trabalha com pesquisa e atenção a problemas relacionados ao uso de drogas.
Na literatura internacional, estudos sugerem que entre 10% e 12% dos médicos desenvolvem um transtorno de abuso de substâncias ao longo da carreira, uma proporção semelhante ao limite superior do restante da população.[4] Dentre os fatores de influência estão sobrecarga de trabalho, acesso mais fácil a drogas, maior habilidade em esconder o problema, erros médicos e viés de seleção que direciona para a medicina pessoas compulsivas e perfeccionistas, que mais tarde não conseguem sucesso em equilibrar o tempo dedicado à profissão e à vida pessoal.
Dentre as especialidades médicas, os anestesiologistas parecem ser particularmente propensos ao abuso de drogas, em especial a opioides.[6]
Em uma pesquisa feita no Uruguai os anestesiologistas apresentaram taxas de abusos de álcool, opioides e cocaína de duas a três vezes mais elevadas em comparação com médicos internistas. O Dr. John Tetzlaff, do Instituto de Anestesiologia do Cleveland Clinic Lerner College of Medicine, em Ohio, Estados Unidos, escreveu que, pela natureza de sua especialidade, os anestesiologistas constantemente obtêm e utilizam substâncias controladas, assim como se tornam especialistas na administração parenteral delas.
"Esse processo repetitivo cria condições ideais para o desvio de substâncias controladas e para a automedicação", disse o Dr. Tetzlaff. "A triste realidade é que esse uso, de maneira rápida e consistente, leva à dependência química com um potencial elevado e não usual de morbidade e mortalidade.[8]
O vício é a "sombra negra" que tem acompanhado a anestesia desde suas origens, reconheceram os Drs. Christopher Kent e Karen Domino, do Departamento de Anestesiologia e Medicina da Dor da University of Washington, em Seattle (Estados Unidos).
"Os heróis dos primórdios da história da anestesia, Humphry Davy, Horace Wells, Robert Glover e William Halsted, foram dependentes – em alguns deles uma dependência fatal – de anestésicos inalatórios, cocaína ou opioides", destacaram. E recomendaram que a vigilância que os anestesiologistas aplicam ao cuidado de seus pacientes também inclua o monitoramento quanto ao possível vício de seus colegas "para assegurar que mais anestesiologistas não sofram o destino trágico de alguns pioneiros da profissão".[9]
No Brasil, 15% dos profissionais de saúde tratados por abuso de drogas são anestesistas, ainda que os membros dessa especialidade representem apenas 3% do total de médicos. Para Flavia Serebrenic Jungerman, integrante do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogras (GREA) do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, e primeira autora de um artigo de revisão sobre o tema,[10] para os médicos em geral é "extremamente difícil" reconhecer a própria dependência e buscar ajuda.
"Eles têm muito a perder em termos profissionais", disse ela ao Medscape. "E quando descobrem que outros colegas são dependentes, sentem que podem prejudicá-los (ou às suas famílias) se revelarem a doença. Isso resulta em uma conspiração de silêncio."
Para os especialistas, diante da suspeita de que um colega apresenta um transtorno de uso de substâncias, deve-se adotar uma conduta com grande prudência e consideração. Acusá-lo falsamente pode produzir dano extremo ao médico, à família e aos pacientes dele. No entanto, omitir-se, agindo como se nada estivesse acontecendo, porém, pode ter o mesmo efeito.[11]
Reabilitar, e não punir
Claro que a maioria dos anestesiologistas e médicos em geral não abusa de drogas ou medicamentos. Porém, em qualquer circunstância, os especialistas concordam que o primeiro passo para enfrentar o problema dos que são dependentes é não realizar uma abordagem repressora ou punitiva, mas aplicar uma política sanitária que favoreça a reabilitação pessoal e profissional.
"A primeira consequência de uma resposta punitiva é o ocultamento da situação. E isso aumenta a dificuldade de prevenir e intervir", disse Graciela.
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Nas últimas décadas foram criadas iniciativas para o tratamento em longo prazo de transtornos mentais e problemas de abuso de substâncias em médicos. Nos Estados Unidos, 47 estados têm programas de assistência específica, os Physician Health Programs ou PHPs, que promovem a detecção precoce, o aconselhamento, a avaliação e o encaminhamento a centros de reabilitação por 60 a 90 dias. O tratamento segue de forma ambulatorial (baseado no programa de 12 passos) e os médicos inscritos são submetidos a análises de urina ao acaso durante cinco anos ou mais. Atualmente existem cerca de 9.000 médicos sendo monitorados.[12] Ao fim de cinco anos, 71% dos profissionais tratados mantêm a licença de trabalho.
A Espanha implementou programas semelhantes desde 1998, quando o Colegio Oficial de Médicos de Barcelona lançou o PAIME: Programa de Atención Integral al Médico Enfermo. Nos primeiros cinco anos de funcionamento o PAIME atendeu a 613 médicos. Em 2002, 73% dos profissionais em tratamento seguiam trabalhando.[13] Um projeto semelhante no Brasil, a Rede de Apoio a Médicos, foi criado em 2002 e nos primeiros quatro anos atendeu a 192 médicos do estado de São Paulo por transtornos mentais, burnout ou dependência de álcool ou drogas.[14]
Na Argentina, algumas sociedades médicas estão começando a oferecer programas para seus associados. A Asociación de Anestesia, Analgesia y Reanimación de Buenos Aires (AAARBA) retira temporariamente da prática hospitalar os profissionais dependentes ou com outros transtornos, financia a reabilitação e mantém o seguro médico deles. No entanto, ela não tem poder para suspender a licença durante o processo, e, assim, é possível que continuem trabalhando em centros pequenos ou periféricos antes que se tenha verificado uma recuperação completa. Os dados sobre os participantes e seus resultados são mantidos privados.
Ainda que não existam registros públicos na região, é provável que os resultados dessas iniciativas sejam muito positivos. De acordo com estudos internacionais, os médicos têm taxas de abstinência muito altas (entre 74% e 90%) uma vez que completam os programas de reabilitação, números semelhantes aos obtidos por pilotos de avião e superiores aos da população em geral.[4]
"Uma vez diagnosticados, os médicos aderem mais aos programas de reabilitação porque são acompanhados de perto e são obrigados a participar e a se submeter a testes toxicológicos. Essa é a condição para retornar ao trabalho", destacou Flavia.
Dr. Peter Grinspoon.
Imagem: cortesia Lizzi Grinspoon
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O Dr. Peter Grinspoon, professor de medicina em Harvard e membro da equipe do Massachusetts General Hospital, é um médico reabilitado do abuso de opioides. "Estou limpo há dez anos", se orgulha. Ele escreveu um livro, Free Refills. A Doctor Confronts His Addiction (Hachette Books, 2016), no qual descreve de maneira honesta e sensível como passou de um profissional respeitável a um viciado que não hesitou em mentir, roubar e manipular para satisfazer a própria necessidade de drogas. Na obra o médico aborda também de que forma é possível voltar do inferno, e como ajudar aqueles que passam por uma situação semelhante
Em entrevista ao Medscape o Dr. Grinspoon assegurou que os médicos com dependência que são tratados e monitorados têm uma taxa de êxito de 80% no processo de reabilitação. E estão em perfeitas condições para o atendimento de pacientes, sempre que aceitam participar de programas que controlem a abstinência.
"De certa forma, somos mais seguros que os outros médicos, porque muitos médicos têm vícios ou depressão sem tratamento, enquanto nossos problemas estão claros, tratados e monitorados", enfatizou.
No entanto, com relação ao caso particular na Argentina, do médico detido em Buenos Aires, o Dr. Grinspoon se mostrou mais cauteloso: "Um médico com antecedentes de violência, vinculados ou não ao uso de drogas, é uma história diferente. Seria muito imprudente permitir a volta dele à prática, mas é preciso conhecer mais detalhes da situação antes de fazer um julgamento definitivo".
Controles antidoping? Não!
Por outro lado, o Dr. Grinspoon manifestou seu franco desacordo com a implementação de controles antidoping massivos aleatórios para médicos. "Não é o caminho", destacou.
"Essas análises têm muitos falsos negativos (os médicos são suficientemente sofisticados para enganar o controle) e, o que é pior, falsos positivos, que podem gerar um dano incalculável na carreira. Muitas substâncias podem ter reações cruzadas e produzir resultados positivos, mesmo sem haver consumo de drogas ilícitas. Ou o laboratório pode cometer erros. Retiramos cada médico da prática cada vez que há um resultado positivo? Confirmamos o exame? Como? O que fazemos com os pacientes enquanto isso?", questionou.
E acrescentou: "A análise do rastreamento para uso drogas é impossível de ser interpretada sem um contexto. Prescreveram ao médico legalmente um analgésico para tratamento odontológico? Ele tomou um comprimido antigo, procedente de uma prescrição válida, para uma cefaleia circunstancial? Esse tipo de situação acontece o tempo todo e é impossível interpretar os exames de drogas sem uma equipe de monitores que conheçam o médico, e que entendam de vícios, que é o que tínhamos quando trabalhei com profissionais dependentes no Physician Health Program (de Massachusetts). Ainda assim, era difícil interpretar os resultados positivos das análises, e estamos falando de uma centena de médicos estudados".
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"Como se poderia fazer o mesmo com dezenas de milhares de médicos? A ideia é ridícula!"
Para o Dr. Grinspoon uma solução muito melhor consiste em educar sobre adições e burnout, assim como criar um ambiente menos punitivo e mais acolhedor. "O médico deveria poder pedir ajuda se enfrenta algum vício, sem temer a perda da licença. Assim vai pedir ajuda antes que aconteça algo trágico!", argumentou.
Em uma coluna recente para o Los Angeles Times,[15] o Dr. Grinspoon resumiu sua perspectiva sobre o fenômeno. Assinalou que a sociedade começou a mudar de opinião sobre o vício, de uma falta moral que merece castigo para uma doença que pode ser tratada com sucesso. E que isso é tão válido para o médico como para qualquer pessoa.
Deixando de lado casos extremos e outros detalhes indesculpáveis, como a violência de gênero ou o tráfico de drogas, a dependência química não deveria implicar no fim de nenhuma carreira.
"Quando um médico abusa de álcool ou drogas, deve ser tratado com compaixão e cuidado", escreveu o Dr. Grinspoon. "Ao invés de revogar ou suspender a licença dele, como um ato reflexo, as juntas médicas dos estados podem garantir a segurança dos pacientes mantendo os médicos no trabalho sob estrita supervisão. Sabe-se que o processo de recuperação permite que voltem à prática produtiva como médicos melhores, dado que ele fortalece as qualidades mais desejadas nos que cuidam da saúde: humildade, empatia e paciência".
Referências
- Caplan A. Doctors and Nurses Should Be Drug-Tested -- Get Used to It. Medscape. Agos 01, 2013. Disponível em: http://www.medscape.com/viewarticle/808385.
- Halat, Angelica, "An Anesthesiologist, a Brain Surgeon and a Nurse Walk into a Bar . . .: A Call for Change in How America Handles Health Care Worker Substance Abuse" (2016). Law School Student Scholarship. Paper 753. Disponível em: http://scholarship.shu.edu/student_scholarship/753.
- Ferrada P, Salomón S, Pina J et al. Evaluación de conductas adictivas en personal médico y no médico en un hospital de agudos: estudio comparativo. Rev Med Universitaria-UNCu. 2008; Vol 4 N°3. Artigo.
- Berge KH, Seppala MD, Schipper AM. Chemical Dependency and the Physician. Mayo Clinic Proceedings. 2009;84(7):625-631.
- Reese S. Drug and Alcohol Abuse: Why Doctors Become Hooked. Medscape. May 06, 2015. Disponível em: http://www.medscape.com/viewarticle/843758.
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- Barreiro G, Benia W, Francolino C et al. Consumo de sustancias psicoactivas: estudio comparativo entre anestesiólogos e internistas en Uruguay. Anest Analg Reanim [online]. 2001, vol.17, n.1 [citado 2017-02-07], pp.20-25. Artigo.
- Teztlaff JE. Drug Diversion, Chemical Dependence, and Anesthesiology. 2011. Adv Anesth 29: 113-27
- Kent CB y Domino KB. A History of Drug Addiction in Anesthesia. The Wondrous Story of Anesthesia. Eger II EI. et al (edit). 2014; Nueva York: Springer. Pág. 219-27
- Jungerman, FS, Palhares Alves HN, Carvalho Carmona MJ et al. Anesthetic drug abuse by anesthesiologists. Rev. Bras. Anestesiol. [oline]. 2012, vol.62, n.3 [cited 2017-02-07], pp.380-386. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-70942012000300010&lng=en&nrm=iso.
- Boyd JW. Deciding Whether To Refer a Colleague to a Physician Health Program. AMA Journal of Ethics. 2015. Oct; 17;10: 888-893. doi: 10.1001/journalofethics.2015.17.10.spec1-1510.
- DuPont RL, McLellan AT, Carr G y cols. How are addicted physicians treated? A national survey of Physician Health Programs. J Subst Abuse Treat. 2009. Jul;37(1):1-7. doi: 10.1016/j.jsat.2009.03.010.
- Arteman Jané A. Programas especiales dirigidos al médico enfermo. JANO EXTRA 2004. Vol. LXVI (N.º 1.514): 17-26. Disponível em: http://www.jano.es/ficheros/sumarios/1/66/1514/17/1v66n1514a13060093pdf001.pdf.
- Palhares Alves HN. Dependência química entre médicos: a experiência de um serviço pioneiro no Brasil - Rede de Apoio a Médicos. Tese de doutorado, São Paulo, 2007. Disponível em: http://www.uniad.org.br/images/stories/arquivos/TESE_HAMER.pdf.
- Grinspoon P. "Up to 15% of doctors are drug addicts. I was one of them." Los Angeles Times, 5 de junho de 2016. Disponível em: http://www.latimes.com/opinion/op-ed/la-oe-grinspoon-addicted-doctors-20160605-snap-story.html.
Fonte: Matías A. Loewy
Medscape
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