segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Epidemia sobre duas rodas: como enfrentar o aumento de sinistros com motociclistas no Brasil (*Por Daniela Barros)



A cada dia, por mais de 10 horas eles cruzam avenidas congestionadas sob altas temperaturas, pressão para cumprir prazos e poucas pausas. À noite, recorrem a estimulantes para se manterem acordados ou a bebidas para relaxar. No dia seguinte, voltam à rotina de motociclistas.

A fadiga e uso de substâncias são o pano de fundo de uma epidemia silenciosa. Embora campanhas de segurança viária enfatizem o uso do capacete e o controle de velocidade, fatores humanos como cansaço, estresse, consumo de bebidas alcoólicas e drogas permanecem subnotificados e subtratados.

“Os estimulantes são frequentemente utilizados para compensar a fadiga. Anfetaminas, cafeína em altas doses e bebidas energéticas retardam o sono, mas reduzem a atenção seletiva e a capacidade de julgamento. Isso cria uma ilusão de desempenho, quando, na verdade, há redução da coordenação motora e aumento do risco de erro”, explica a pesquisadora Daniele Mayumi Sinagawa, do Departamento de Medicina Legal, Bioética, Medicina do Trabalho e Medicina Física e Reabilitação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).

Um estudo de 2022 indica que 31,4% dos pacientes internados por trauma haviam consumido substâncias psicoativas. Ao todo, 56% dos casos resultaram de acidentes de trânsito e, destes, cerca de metade envolvia motociclistas.

Para Daniele, até a terminologia usada nesses casos precisa evoluir: “Instituições como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Ministério da Saúde recomendam substituir a palavra ‘acidente’ por ‘sinistro viário’, porque o evento é evitável. Essa mudança de vocabulário desloca o debate da fatalidade para a responsabilidade compartilhada e para a prevenção”.

Entre o cansaço e o uso de substâncias

O consumo de álcool e outras substâncias psicoativas, associado à privação de sono e às longas jornadas, desponta como um dos gatilhos mais críticos dos sinistros envolvendo motociclistas, fatores que frequentemente se combinam e potencializam o risco.

Em 2018, cerca de 11,4% dos motoristas nas capitais brasileiras relataram dirigir após o consumo de bebidas alcoólicas. Em 2021, o Brasil registrou 10.887 óbitos atribuíveis à mistura de álcool e direção, o que equivale a aproximadamente 1,2 morte por hora.

No caso específico de motociclistas, estudo do Instituto de Ortopedia e Traumatologia da USP mostrou que cerca de 20% das vítimas haviam consumido álcool ou outras substâncias antes do sinistro. 

Daniele acrescenta que, entre motociclistas autônomos e entregadores, “a ausência de regulação de jornada e a pressão por entregas rápidas aumentam a exposição à fadiga e ao uso de substâncias, enquanto trabalhadores com vínculo formal tendem a ter rotinas mais estáveis e pausas regulares”.

A fadiga, por si só, já é um fator de risco significativo. No estudo exploratório conduzido em Recife com trabalhadores que sofreram acidentes de moto, a sobrecarga de trabalho mostrou associação direta com cansaço persistente e comportamentos de risco ao dirigir.

Internacionalmente, um estudo mostra que dirigir fatigado triplica o risco de colisões com lesões graves. “É comum o trabalhador cansado recorrer a estimulantes para se manter acordado. Esse uso combinado de substâncias e fadiga cria um risco sinérgico: o corpo permanece exausto e a percepção de alerta é enganosa”, alerta Daniele.

O conjunto dessas evidências sugere que não basta fiscalizar apenas o uso de álcool por motoristas. É necessário monitorar fadiga, uso de estimulantes e medicamentos, além da carga de trabalho, especialmente entre motociclistas profissionais e entregadores de aplicativo. Trata-se de um problema simultaneamente comportamental, fisiológico e ocupacional que exige respostas coordenadas dos órgãos de saúde, trabalho e segurança viária.

Um problema global

A correlação entre fadiga, uso de substâncias e sinistros de motociclistas é um fenômeno global, presente tanto em países desenvolvidos quanto em nações em desenvolvimento. As diferenças residem sobretudo na capacidade de vigilância, de regulação das jornadas e de suporte ao trabalhador.

No Brasil, levantamentos mostram altas prevalências de uso de substâncias entre motoristas profissionais. Em um estudo conduzido por Daniele, 7,8% desses trabalhadores no estado de São Paulo testaram positivo para anfetaminas, cocaína ou Cannabis. Os dados apontam tendência semelhante à observada em outros países da América do Sul.

Na Noruega, um estudo analisou motociclistas mortos em sinistros viários e identificou álcool ou drogas em 27,1% deles, principalmente etanol, benzodiazepínicos e estimulantes. Na Austrália, análises toxicológicas pós-acidente mostram que de 20% a 25% das fatalidades viárias (incluindo as de motociclistas) estavam relacionadas ao consumo etílico ou de outras drogas, sendo o álcool como principal agente.

Em países em desenvolvimento, o quadro é igualmente preocupante. Na Nigéria, um estudo com motociclistas comerciais (chamados de okada riders) mostrou que 36% relataram usar álcool ou outras substâncias durante o trabalho, e metade deles já havia se envolvido em acidentes fatais de trânsito. As bebidas locais e o tabaco foram as substâncias mais citadas, frequentemente associadas à crença de que “melhoram o desempenho” ou “reduzem o estresse”.

Na Indonésia, um estudo realizado com motociclistas mostrou que dormir por seis horas ou menos duplicava a probabilidade de cometer infrações de trânsito no dia seguinte, em comparação com quem dormia pelo menos sete horas.Além do uso de substâncias, a fadiga também se confirma como fator de risco transversal entre condutores de motocicleta.

Um estudo conduzido com motociclistas no Benim identificou prevalência elevada de fadiga e sonolência ao dirigir, associadas a longas jornadas, condução noturna e falta de pausas regulares. O estudo demonstrou que mais de um terço dos condutores relatava sinais de fadiga moderada a intensa durante o trabalho, e que esse fator estava fortemente correlacionada à ocorrência de infrações e quase acidentes, configurando um marcador de risco ocupacional. Essa conclusão é coerente com achados brasileiros que relacionam sobrecarga de trabalho, esgotamento emocional e comportamentos de risco em trabalhadores que se locomovem com motocicleta.

Em síntese, o Brasil compartilha com países de rendas média e baixa o duplo desafio de lidar com fadiga ocupacional e uso de substâncias em um contexto de informalidade laboral e longas jornadas, agravado pela ausência de regulação efetiva da jornada de motociclistas profissionais e de fiscalização toxicológica rotineira.

Nos países de alta renda, embora as taxas sejam menores, observam-se avanços como testagens toxicológicas obrigatórias, programas de descanso para condutores e campanhas educativas sobre sono e uso de substâncias — estratégias ainda incipientes na realidade brasileira.

Panorama epidemiológico e magnitude do problema

Os números confirmam que o Brasil vive uma epidemia de lesões e mortes sobre duas rodas. Em 2020, o Sistema Único de Saúde (SUS) registrou 190.628 internações por lesões de trânsito, sendo 61,6% de motociclistas. No mesmo ano, ocorreram 32.716 óbitos, dos quais 36,7% foram de motociclistas.

Entre 2011 e 2021, a taxa de mortalidade específica por motociclistas manteve-se em torno de 5,8 mortes por 100 mil habitantes. No mesmo período, as internações nesse grupo cresceram 55% no SUS, acompanhando a duplicação da frota nacional de motocicletas, que saltou de 18,4 milhões para 30,3 milhões de veículos.

O perfil é consistentemente masculino: em 2021, 88% dos mortos em acidentes de motocicleta eram homens, e a maioria tinha entre 20 e 39 anos, faixa etária de maior produtividade econômica. O resultado é um impacto social e previdenciário expressivo, considerando-se que o trabalhador jovem, ativo e principal provedor familiar é o mais afetado pelo problema.

O alto preço das lesões

As lesões decorrentes dos sinistros motociclísticos figuram entre as mais graves do espectro traumático. Segundo Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, predominam fraturas múltiplas, traumatismos cranioencefálicos, lesões medulares e amputações.

“Esses traumas envolvem alta energia e frequentemente comprometem articulações, o que aumenta o risco de sequelas permanentes. Mesmo quando o osso se consolida, a rigidez articular e a dor crônica podem limitar o movimento e impedir o retorno ao trabalho”, explica o ortopedista Dr. Marcos de Camargo Leonhardt, chefe do pronto-socorro do Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas, da FMUSP, destacando que as lesões mais comuns são fraturas de membros inferiores, sobretudo de tornozelo e joelho.  Segundo ele, as complicações de partes moles, como necrose cutânea e infecções pós-cirúrgicas, “podem prolongar a internação e exigir cirurgias reconstrutivas, atrasando o início da reabilitação”.

Um levantamento recente da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia (SBOT) identificou que 82,1% dos motociclistas internados relatam como sequela dor crônica, 69,5% apresentam deformidades, 67,4% têm déficit motor/limitação funcional e 35,8% sofreram amputações.Somando custos hospitalares, reabilitação e perda de produtividade, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estima um gasto anual superior a R$ 50 bilhões com acidentes de trânsito no Brasil.

“O impacto para o sistema público é enorme, pois há uma demanda crescente para financiar esses atendimentos”, alerta o Dr. Marcos. Ele lembra que a maior parte dos pacientes é composta por jovens economicamente ativos. “Esses acidentados [muitas vezes] deixam de ser produtivos, o que repercute diretamente no sustento familiar e no custo social”, afirma. Para o especialista, o desafio é quebrar o ciclo de sequelas e readaptação: “Mesmo quando o paciente sobrevive ao trauma inicial, o caminho até a recuperação funcional é longo e exige estrutura de reabilitação contínua. É fundamental que o encaminhamento ocorra cedo, antes que a dor e a limitação se tornem crônicas.”

O desafio de restaurar a funcionalidade após a alta hospitalar

A carga clínica dos sinistros com motociclistas se estende muito além da alta hospitalar. No SUS, o processo de reabilitação está estruturado na Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência (RCPD), criada pela Portaria GM/MS nº 793/2012. A rede articula a atenção básica, os serviços hospitalares e os Centros Especializados em Reabilitação (CER II a IV), que concentram diagnóstico, tratamento, concessão de tecnologia assistiva e oficinas ortopédicas.

Centros de referência como a Rede de Reabilitação Lucy Montoro, em São Paulo, exemplificam o modelo multiprofissional de atendimento: fisiatria, fisioterapia, terapia ocupacional, fonoaudiologia, psicologia, enfermagem e assistência social trabalham de forma integrada, com triagem e plano terapêutico individualizado.

“O atendimento começa ainda na fase aguda, dentro da unidade de emergência, onde a equipe de reabilitação inicia o manejo precoce para evitar complicações”, explica a fisioterapeuta Aline Miranda Ferreira, do Lucy Montoro do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP) e presidente da Associação Brasileira de Fisioterapia Traumato-Ortopédica e Fisioterapia em Reumatologia (Abrafito).

Segundo ela, após a alta hospitalar, “o paciente segue para tratamento ambulatorial, com acompanhamento médico e fisioterapêutico no mesmo dia, metas claras e reforço positivo a cada avanço”. “Nosso foco é educar o paciente sobre o processo de recuperação, reduzir o medo e o desânimo e garantir adesão, fatores que são determinantes para o sucesso da reabilitação”, destaca.

Evidências brasileiras mostram que o retorno ao trabalho é heterogêneo e frequentemente tardio. Em um estudo com vítimas de acidentes de trânsito avaliadas seis meses após a alta hospitalar — sendo mais da metade motociclistas —, apenas 52% haviam retomado suas atividades laborais no período analisado.

De acordo com Aline, as fraturas de membros inferiores, particularmente de perna e tornozelo, estão entre as principais causas de incapacidade funcional no mundo e são muito frequentes entre motociclistas jovens: “Essas fraturas costumam gerar dor persistente, rigidez articular e dificuldade para caminhar, afetando diretamente o retorno ao trabalho, ao lazer e ao esporte. Em média, a reabilitação leva de três a seis meses, podendo ultrapassar um ano nos casos graves ou com múltiplas lesões”, afirma a fisioterapeuta.

A especialista reforça que o prognóstico depende não apenas da gravidade do trauma, mas também da adesão ao tratamento e da autoeficácia do paciente, e “a crença de que ele é capaz de se recuperar influencia o desfecho tanto quanto fatores físicos”, diz. A presença de múltiplos traumas e dor crônica está fortemente associada a limitação funcional e redução das chances de retorno ao trabalho.

O Dr. Marcos ressalta que o tempo médio de recuperação nos casos graves fica em torno de seis meses a um ano, com fisioterapia convencional como principal modalidade terapêutica. “A dor crônica e a limitação de mobilidade são os fatores que mais restringem o retorno à vida ativa, mesmo com uma reabilitação bem conduzida”, observa.

Estudos brasileiros reforçam que a retomada das atividades por motociclistas vítimas de sinistros permanece muito reduzida após a alta hospitalar. Em estudo que incluiu 79 motociclistas internados em centro de reabilitação, 86% eram homens com média de idade de 29,5 anos; destes, apenas 14% conseguiram retomar a vida laboral e apenas 8,8% retornaram à condução de veículo adaptado após o trauma.

Essas evidências reforçam a necessidade de encaminhamento rápido, da implementação de planos de reabilitação vocacional (readaptação, melhora da ergonomia no trabalho, negociação com empregadores) e de atenção à saúde mental e ao uso de substâncias, fatores que interferem diretamente na adesão ao tratamento e na recuperação funcional.

“Mesmo após o término da fisioterapia, muitos pacientes mantêm alguma limitação funcional ou dor persistente, o que pode comprometer a autonomia e o retorno ao trabalho”, observa Aline.

Estudos internacionais indicam que uma proporção significativa de vítimas de acidentes de trânsito não retomam suas atividades laborais. No Brasil, “o retorno depende fortemente do nível de deficiência, da presença de dor e das expectativas sobre a recuperação”, acrescenta a fisioterapeuta. O trabalho de reabilitação precisa incluir também o preparo emocional, porque depressão, ansiedade e cinesiofobia [medo de se movimentar] interferem na adesão e na recuperação plena”, conclui Aline.

Transformando tragédias evitáveis em políticas públicas

O enfrentamento do problema requer uma mudança estrutural: do foco punitivo para uma abordagem de saúde pública e ocupacional. Após o sinistro, o primeiro passo é garantir o encaminhamento em até 30 a 45 dias aos serviços de reabilitação, reduzindo o risco de incapacidades e facilitando o retorno ao trabalho.

Durante a recuperação, é fundamental uma abordagem multiprofissional voltada para manejo da dor crônica, prevenção de rigidez e atrofia, reeducação sensório-motora e readaptação laboral. “A avaliação é sempre multiprofissional, especialmente quando há lesão medular ou traumatismo craniano”, detalha Aline. “O fisioterapeuta encaminha o paciente para outros profissionais conforme as demandas identificadas, e há reuniões clínicas conjuntas, visitas às enfermarias e discussões de caso com ortopedistas, terapeutas ocupacionais, psicólogos e assistentes sociais, o que garante um plano de tratamento contínuo e integrado.”

Para atender a todos, o acesso à tecnologia assistiva e às oficinas ortopédicas da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência (RCPD) do SUS deve ser expandido, com ênfase na produção e adaptação de órteses e próteses. Além disso, programas de retorno ao trabalho devem incluir avaliações periódicas de capacidade, simulações de tarefas e ajustes ergonômicos personalizados.

“A medida mais urgente é tratar o uso de substâncias como uma questão de saúde ocupacional, não apenas de trânsito. Isso inclui investir na prevenção e no cuidado desses trabalhadores, além da fiscalização, para reduzir o impacto social dos sinistros viários”, enfatiza Daniele. Reconhecer que cada sinistro é evitável é o primeiro passo para salvar vidas. Enquanto o país discute limites de velocidade e uso do capacete, a fadiga e os estimulantes, que sustentam essa engrenagem, continuam invisíveis. “A linguagem já mudou”, resume Daniele, “agora precisamos mudar a prática”. 

*Daniela Barros é jornalista, com especialização em jornalismo social pela PUC-SP e mestranda no Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP). Escreve sobre medicina há 23 anos, colaborando com diversas publicações especializadas no tema.

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Imagem principal: Lucian Coman / Dreamstime

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