segunda-feira, 21 de julho de 2025

Nova estratégia cirúrgica em pacientes com anomalia de Ebstein neonatal

Medscape

Dra. Juliana Torres Pacheco

A forma neonatal da anomalia de Ebstein impõe enormes desafios e está associada a elevada taxa de mortalidade. Caracterizada por malformação da valva tricúspide e alterações estruturais do ventrículo e átrio direitos, costuma se manifestar nas primeiras horas de vida com insuficiência cardíaca e respiratória grave, além de hipoplasia pulmonar secundária à cardiomegalia.

Em 1987, Starnes e colaboradores descreveram uma abordagem cirúrgica que se tornou amplamente adotada para esses casos graves: a exclusão funcional do ventrículo direito (VD) por meio da colocação de um patch fenestrado no anel tricúspide, associada a um shunt sistêmico-pulmonar. O objetivo é estabilizar o recém-nascido e aliviar a compressão sobre o ventrículo esquerdo, promovendo redução progressiva da área cardíaca. Essa estratégia tradicionalmente conduzia os pacientes a uma fisiologia univentricular definitiva.

Contudo, estudo publicado recentemente no periódico Seminars in Thoracic and Cardiovascular Surgery, [1] assinado pelos cirurgiões brasileiros Dra. Luciana da Fonseca da Silva e Dr. José Pedro da Silva, propõe uma nova abordagem para os neonatos críticos com Ebstein: o tratamento em dois estágios, utilizando a cirurgia do cone após o procedimento de Starnes. Segundo os autores, essa estratégia permite, em muitos casos, a recuperação funcional do VD e a transição para uma fisiologia biventricular ou de “um ventrículo e meio”.

O protocolo utilizado segue um fluxograma estruturado de decisão logo após o nascimento, com base, entre outros artigos, no consenso da American Association for Thoracic Surgery (AATS), publicado em 2024. Pacientes com fluxo anterógrado adequado pela valva pulmonar, sem sinais de insuficiência cardíaca e insuficiência tricúspide significativa, podem permanecer em acompanhamento clínico até a indicação da correção total pela técnica do cone durante a infância.

Por outro lado, aqueles sem fluxo pulmonar adequado devem passar por uma avaliação cuidadosa da anatomia do trato de saída e da valva pulmonar, para identificação de atresia pulmonar funcional ou anatômica, bem como avaliação da função do VD. Pacientes com anel preservado e boa anatomia podem ser submetidos ao desmame de prostaglandina e, caso mantenham saturação adequada após o fechamento do canal arterial, prosseguem com tratamento clínico. Os demais requerem intervenção cirúrgica ou percutânea, como stent em canal arterial ou shunt sistêmico-pulmonar, a depender da anatomia e estabilidade clínica. Em caso de insuficiência cardíaca descompensada ou, ainda, na presença de shunt circular, os neonatos devem ser encaminhados diretamente para o procedimento de Starnes.

O artigo no Seminars apresenta 17 casos consecutivos operados com essa proposta desde 2019. Todos os pacientes foram submetidos inicialmente ao Starnes, e a maioria chegou à equipe após intervenções realizadas em outros centros, com a circulação já estabelecida via Starnes-Glenn ou, em um caso, via Stanes-Fontan. A reavaliação anatômica e funcional do VD e da valva tricúspide foi feita por ecocardiograma, ressonância magnética e cateterismo cardíaco. Quando a reabilitação era considerada viável, a técnica do cone era empregada. A idade média da cirurgia foi de 2 anos. Os resultados foram animadores: quatro pacientes evoluíram para fisiologia biventricular, e os demais seguiram com a estratégia de “um ventrículo e meio”. O paciente mais velho submetido ao cone tinha oito anos.

A recuperação clínica foi excelente, com extubação ainda na sala em grande parte dos casos e apenas um paciente necessitando de Oxigenação por Membrana Extracorpórea (ECMO) no pós-operatório. A mortalidade hospitalar foi zero, com um único óbito tardio, já fora do hospital, por causa não relacionada ao procedimento cardíaco.

A estratégia de reparo estagiado representa um importante avanço na abordagem da anomalia de Ebstein neonatal. O procedimento de Starnes, antes compreendido como um caminho irreversível rumo à circulação univentricular, passa a ser considerado uma medida de resgate temporária, capaz de estabilizar o neonato e postergar a decisão definitiva de fisiologia até que se tenha melhor compreensão da viabilidade ventricular.

Mesmo pacientes com VD hipoplásico, com volumes indexados (DDFVDi) entre 20 e 30 mL/m², tiveram boa resposta com a cirurgia do cone após o procedimento de Starnes. O tamanho do VD, portanto, não parece ser um fator limitante isolado, embora esse aspecto ainda demande investigação com maior amostragem e seguimento prolongado.

Pacientes com cavidade de VD reduzida ou disfuncional dependerão do fluxo direita-esquerda pela comunicação interatrial (CIA) no pós-operatório imediato para manter o débito cardíaco adequado. A abertura de uma fenestração de cerca de 4 mm no septo interatrial foi eficaz para garantir a descompressão atrial neste período, mantendo o débito cardíaco em casos com complacência ventricular ainda limitada. O uso de óxido nítrico inalatório e oxigenoterapia também se mostrou eficaz na redução da pós-carga do VD, favorecendo o fluxo anterógrado pulmonar. Níveis de saturação periférica entre 80% e 85% são considerados aceitáveis no pós-operatório imediato da cirurgia do cone, com expectativa de melhora progressiva à medida que a função e o volume do VD se restauram.

Além disso, o sucesso do reparo com cone depende de refinamentos técnicos fundamentais já no momento do Starnes. O uso de um patch no tronco pulmonar, em vez da ligadura e secção direta, facilita a reabertura posterior da via de saída do VD e a preservação da valva pulmonar. Outro ponto crítico é a sutura do patch tricuspídeo em posição supra-anular, respeitando a anatomia do nó atrioventricular, o que previne bloqueios cardíacos e facilita a remoção do patch na cirurgia posterior. Esses detalhes, descritos pelo também brasileiro Dr. Rodrigo Freire Bezerra, em artigo publicado em 2024 no periódico Operative Techniques in Thoracic and Cardiovascular Surgery, [2] podem ser decisivos para a reabilitação tardia.

Em síntese, o relato dos casos no Seminars reforça que a escolha da estratégia cirúrgica no período neonatal não precisa ser definitiva. A possibilidade de adiar a decisão univentricular abre novos caminhos para pacientes antes considerados inoperáveis em fisiologia biventricular. A adoção da técnica do cone após Starnes representa não apenas uma evolução técnica, mas também uma mudança de paradigma na abordagem das cardiopatias congênitas críticas.

Referências

  1. Silva LF, Morell V, Castro Medina M, Silva JP. ​ Staged Treatment for Critically Ill Neonates With Ebstein Anomaly: Cone Repair After Starnes Procedure. ​ Semin Thorac Cardiovasc Surg Pediatr Card Surg Ann. ​ 2025;28:38–45. Disponível em: https://www.semtcvspeds.com/article/S1092-9126(25)00010-9/fulltext

  2. Modified Starnes Procedure With Patch Occlusion of the Main Pulmonary Artery and Other Technical Modifications to Facilitate Subsequent Biventricular Repair of Ebstein Anomaly Freire Bezerra, Rodrigo et al. Operative Techniques in Thoracic and Cardiovascular Surgery, Volume 29, Issue 3, 249 - 258

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