segunda-feira, 30 de junho de 2025

Desvendando a inflamação: o papel da microbiota e da dieta no risco cardiometabólico


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Victória Carvalho

A inflamação é um assunto que vem ganhando cada vez mais atenção, especialmente pela sua relação com doenças crônicas. Porém, junto ao interesse científico, cresce também a onda de receitas e métodos milagrosos para “desinflamar” o corpo — muitas vezes sem respaldo científico. Para esclarecer o que é a inflamação e seu real impacto na saúde, a nutricionista Ana Maria Pita Lottenberg fez uma análise detalhada do tema durante o 45º Congresso da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (SOCESP 2025), que aconteceu entre os dias 19 e 21 de junho, em São Paulo.

Segundo a especialista, que é coordenadora da graduação em nutrição da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein, embora a inflamação seja uma resposta fisiológica essencial, o problema começa quando essa resposta se torna constante, mesmo que de forma sutil, originando uma inflamação crônica de baixo grau.

A inflamação persistente tem sido associada ao surgimento de diversas doenças, como diabetes tipo 2, hipertensão arterial, aterosclerose, esteatose hepática não alcoólica e até alguns tipos de câncer. E um dos principais gatilhos desse quadro é o excesso de tecido adiposo, especialmente a gordura visceral.

“Do ponto de vista bioquímico, o indivíduo com obesidade é um indivíduo inflamado”, afirma Ana Maria. Isso porque o tecido adiposo não é apenas um depósito de gordura, ele também funciona como um órgão endócrino, liberando substâncias inflamatórias, como o fator de necrose tumoral alfa (TNF-α) e a interleucina-6 (IL-6).

Além disso, este tecido favorece a translocação de componentes bacterianos, como os lipopolissacarídeos, do intestino para a corrente sanguínea — um fenômeno conhecido como endotoxemia metabólica. O resultado é uma ativação contínua do sistema imunológico, o que compromete diretamente a ação da insulina.

O papel da microbiota intestinal

A microbiota intestinal é uma peça-chave nesse cenário. Em indivíduos saudáveis, com alimentação equilibrada e peso adequado, predominam bactérias benéficas, que ajudam a manter a integridade da barreira intestinal. Essas bactérias produzem ácidos graxos de cadeia curta, como butirato, acetato e propionato, que têm propriedades anti-inflamatórias e contribuem para o metabolismo energético e até mesmo para a comunicação entre intestino e cérebro.

Por outro lado, em indivíduos com sobrepeso ou obesidade, pode ocorrer uma redução da diversidade bacteriana, caracterizando uma disbiose intestinal. Esse desequilíbrio agrava a inflamação do tecido adiposo e, em um ciclo vicioso, contribui para piorar ainda mais a disbiose.

“É difícil até apontar onde começa essa inflamação, porque é um ciclo muito bem estabelecido”, destaca a nutricionista.

Como a inflamação começa

Em condições normais, o intestino tem mecanismos eficientes de autoproteção, mas, quando há ganho de peso e excesso de gordura saturada na dieta, isso muda. As células intestinais têm receptores do tipo toll-like, que detectam ácidos graxos saturados e lipopolissacarídeos. A ativação desses receptores leva à produção de citocinas inflamatórias por meio da via do fator nuclear kappa B (NF-κB), e o ambiente inflamatório resultante desestabiliza as junções das células intestinais, abrindo espaços para a entrada de lipopolissacarídeos na corrente sanguínea, o que intensifica a inflamação. “Esse é o ponto de partida da endotoxemia metabólica que observamos em indivíduos com obesidade”, explica Ana Maria.

Todo esse processo inflamatório pode ser dividido em três fases. A primeira é a do gatilho, geralmente provocado por estresse metabólico decorrente do consumo excessivo de energia. A segunda é uma fase adaptativa, com liberação de citocinas inflamatórias. Se o estímulo continua, inicia-se a terceira fase: a inflamação se torna patológica, levando a resistência à insulina, disfunções mitocondriais, alterações hormonais e aumento sustentado de catecolaminas.

“O problema é que isso se torna um ciclo vicioso”, alerta a nutricionista. “O indivíduo segue consumindo mais [energia] do que gasta, o tecido adiposo permanece inflamado e o metabolismo continua desregulado. Uma das principais formas de quebrar esse ciclo é induzir o déficit calórico e promover a perda de peso. Só assim conseguimos transformar esse círculo vicioso em um ciclo virtuoso”, explica.

Como a dieta pode ajudar?

É sabido que a alimentação tem papel importante na composição da microbiota intestinal. De acordo com a especialista, estudos indicam que o genótipo está ligado a cerca de 7% da variação da microbiota, enquanto a dieta responde por 28%, evidenciando seu papel central nessa composição.

Um dos pontos mais relevantes para a microbiota é a qualidade das gorduras consumidas. Os ácidos graxos saturados, como o ácido palmítico (presente em carnes e óleo de palma) e o ácido mirístico (comum nos laticínios), estão associados ao aumento dos níveis de lipoproteína de baixa densidade do colesterol (LDL) e de triglicerídeos, além da ativação de vias inflamatórias. “A gordura saturada continua sendo o ponto de partida alimentar para o aumento do risco cardiometabólico”, afirma a nutricionista.

Além disso, a ingestão excessiva de gordura saturada altera a composição da microbiota intestinal, reduzindo sua diversidade e prejudicando a produção de ácidos graxos de cadeia curta. Dietas ricas em gordura também afetam a integridade da mucosa intestinal, tornando o intestino mais permeável. “Isso facilita a passagem de endotoxinas, como os lipopolissacarídeos, para a corrente sanguínea”, diz Ana Maria.

“Quando falamos de dietas ricas em gordura, especialmente as com baixo teor de carboidratos, ou cetogênicas, que são adotadas com foco na perda de peso, é preciso cautela. No médio e longo prazo, elas não são consideradas saudáveis justamente por promoverem esse ambiente pró-inflamatório”, explica a nutricionista.

Os alimentos ultraprocessados também devem ser ponto de atenção. “Eles são grandes fontes de gorduras saturadas, tanto na forma tradicional quanto nas versões interesterificadas usadas pela indústria alimentícia”, destaca. E, embora não sejam os únicos vilões, seu consumo excessivo — somado ao alto valor calórico da dieta como um todo — tem papel claro na epidemia de obesidade observada hoje.

Por outro lado, as gorduras insaturadas, como o ácido oleico do azeite de oliva e os ácidos graxos ômega-3 presentes em peixes de águas frias, exercem efeito oposto: são anti-inflamatórias e ajudam a contrabalançar os efeitos dos ômega-6. Ainda assim, o ponto-chave é o equilíbrio: “Não se trata de excluir completamente as [gorduras] saturadas e suplementar as insaturadas, o foco deve estar no balanço adequado entre os tipos de gordura. Mesmo o excesso de insaturadas pode, em certos casos, induzir acúmulo de gordura no fígado”.

Alimentação anti-inflamatória na prática

A resposta, embora simples, esbarra em um desafio bem conhecido: transformar conhecimento em hábito. O padrão alimentar ideal é aquele rico em alimentos in natura ou minimamente processados, com predominância de frutas, verduras, legumes, grãos integrais e leguminosas. Quando possível, azeites, grãos e oleaginosas também podem compor o cardápio, mas com moderação, respeitando as necessidades e possibilidades individuais.

Ana Maria ressalta que o efeito protetor não está em um alimento ou nutriente isolado, mas no conjunto. “Estudos sobre a dieta mediterrânea, por exemplo, mostram que os benefícios vêm da soma dos fatores: antioxidantes, como polifenóis, fibras, gorduras boas, fitoquímicos. Não é o azeite sozinho. Não é a castanha sozinha. É o padrão alimentar como um todo que promove saúde.”

Quando o assunto é inflamação, as fibras merecem atenção especial. De acordo com a especialista, elas são substrato importante para a produção de ácidos graxos de cadeia curta pela microbiota intestinal, com impacto direto na redução da inflamação. “[As fibras] são superimportantes, mas, claro, não adianta só adicioná-las na dieta se ela continua carregada de gordura. É preciso equilibrar esse consumo”, orienta a nutricionista.

No Brasil, o equilíbrio alimentar ainda está distante da realidade: apenas um a cada três adultos consome frutas e hortaliças cinco dias por semana. E mesmo alimentos tradicionais e acessíveis, como o feijão, que é uma excelente fonte de fibras e proteína, vem perdendo espaço no prato do brasileiro. “Hoje em dia, a primeira coisa que ouvimos no consultório é ‘doutor, já tirei o arroz e o feijão’ [da dieta], o que é lamentável”, compartilha Ana Maria. “É curioso e preocupante como uma combinação tão simples e completa do ponto de vista nutricional esteja sendo deixada de lado”, alerta.

“No fim das contas, o que precisamos fazer, enquanto profissionais de saúde, independentemente da especialidade, é incentivar o resgate do hábito alimentar brasileiro. Desinflamar não exige receitas mirabolantes, mas escolhas simples e conscientes”, conclui a nutricionista.

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