quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Médico deve "meter a colher" quando o assunto é violência doméstica, mas há regras a seguir

Foto: Reprodução Internet
De acordo com o Atlas da Violência de 2018, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)[1], só em 2016, mais de quatro mil mulheres foram assassinadas no Brasil, o que significa 4,5 homicídios a cada 100 mil brasileiras – um aumento de 6,4% em 10 anos.
Quando se trata de violência doméstica contra mulheres, os números também são assustadores. Conforme dados publicados no Panorama da Violência Contra as Mulheres no Brasil[2], do Observatório da Mulher Contra a Violência, só em 2015 foram registrados mais de 75 mil atendimentos a mulheres vítimas de violência, sendo que 50,16% deles corresponderam a violência física, 4,54% a violência sexual e 5,17% a cárcere privado. Até o final de 2017 tramitavam 1.273.398 processos referentes à violência doméstica no país[3].
Mesmo com a Lei Maria da Penha, que entrou em vigor em setembro de 2006 para coibir a violência doméstica e familiar prevenindo a perpetuação do ciclo de violência e punindo os responsáveis por estes atos, os casos de feminicídio continuam em crescimento. Dois exemplos recentes ilustram o cenário. O primeiro foi a morte da advogada paranaense Tatiane Spitzner, que foi espancada repetidas vezes pelo marido e em seguida encontrada morta em decorrência da queda do quarto andar do prédio em que morava o casal. O segundo caso emblemático foi o da corretora de imóveis Karina Garofalo, assassinada a mandado do ex-marido porque, de acordo com as investigações até o momento, o casal brigava na Justiça por uma partilha de bens e o ex-marido não aceitava que Karina estivesse em um novo relacionamento.
Amplamente comentados nas redes sociais, os casos geraram protesto para combater o dito popular em que "em briga de marido e mulher não se mete a colher". A hashtag #metaacolher ou suas variações, como #metaacolhersim, tiveram grande divulgação recentemente. Os casos suscitaram indignação, mas também dúvidas sobre os limites e consequências legais da intervenção de terceiros em uma situação de violência doméstica.

Médico pode "meter a colher", mas há regras para evitar processos

Foto: Reprodução Internet
Quando o médico se depara em consultório ou pronto-socorro (PS) com uma paciente que suspeita estar sofrendo violência doméstica, muitas vezes não sabe como agir. Até onde o médico pode ir para investigar mais profundamente o caso e, quem sabe, até mesmo denunciá-lo às autoridades competentes?
De acordo com coordenador do Núcleo de Violência Sexual do Hospital Pérola Byington, Dr. André Malavasi, é importante que o médico preste atenção a vários detalhes durante a consulta. Uma anamnese bem-feita, por exemplo, já traz indícios claros de que a mulher está sendo vítima de violência doméstica. "É importante uma anamnese ampla, com escuta ativa. Precisamos deixar a mulher falar de forma livre e espontânea, e prestar atenção aos sinais indiretos para perceber o grau de ansiedade em que ela se encontra", diz o Dr. Malavasi.
O presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), Dr. Lavínio Nilton Camarim, explica que o médico não consegue adivinhar que a mulher sofreu violência, mas que há indícios mostrando que isso ocorreu, e que a melhor forma é estabelecer uma relação de confiança durante a consulta para que a paciente se sinta confortável para relatar o que se passou.
"Todas as informações devem ser colocadas no prontuário, pois, de acordo com a lei e com o Conselho Federal de Medicina (CFM), o prontuário é um instrumento sigiloso", diz.
Depois que a paciente contar tudo o que aconteceu, é importante que o profissional de saúde fique atento ao comportamento do acompanhante, para entender se há indícios de que ele(a) possa inibir algum relato dela.
"O médico deve ter essa perspicácia, essa sensibilidade de identificar os sinais indiretos de medo", diz Dr. Malavasi. Perguntas mais direcionadas podem ser feitas durante a anamnese. Não há restrições sobre perguntar abertamente se a paciente sofreu violência, por exemplo. Como o exame físico pode ser feito em um local reservado, o ideal, de acordo com o Dr. Malavasi, é que o médico peça para o eventual acompanhante se retirar e chame uma acompanhante da enfermagem para que o exame seja feito em conjunto.
"Nesse momento, o médico deve reforçar objetivamente alguns pontos para tentar ver, com a experiência dele, se a pessoa está sendo ameaçada pelo companheiro ou companheira, já que quando se trata de violência, não há gênero".
O especialista explica que o exame físico é a condição ideal para verificar se a paciente está mentindo, já que várias chegam ao atendimento alegando que as marcas físicas são decorrentes de tombos. Procurar identificar até mesmo se a paciente está sofrendo cárcere privado, por exemplo, é fundamental, pois pode ser aquele o momento em que ela pode ser libertada, diz Dr. Malavasi.
A falta de confiança no médico é um problema para que a paciente conte sobre a violência que sofreu. É nesse momento que o profissional deve, de acordo com Dr. Malavasi, reforçar a questão do sigilo médico.
"É preciso falar de formas diferentes para que a paciente tenha plena compreensão de que as informações que vai passar serão utilizadas para fins terapêuticos, e só serão divulgadas caso ela autorize", diz.
Se autorizado pela paciente, o médico pode, sim, denunciar que a mulher sofreu violência doméstica. Quando a paciente confessa e autoriza a quebra do sigilo, diz o Dr. Camarim, o médico deve documentar essa autorização no prontuário. O profissional, então, pode prestar queixa por meio da instituição onde a paciente foi atendida.
Para se precaver de futuros processos, o médico deve se certificar de registrar esse consentimento no prontuário médico, com a assinatura da paciente e de mais uma testemunha, que pode ser recrutada entre a equipe de enfermagem do hospital, por exemplo. Se a paciente não autorizar a quebra de sigilo para que o médico denuncie, resta ao médico orientar sobre a importância de ela registrar um boletim de ocorrência.
"A violência não deve ficar impune. Às vezes as pessoas têm muito medo de denunciar, principalmente em casos de violência doméstica", diz o Dr. Camarim.
"A vítima não deve demorar para denunciar e fazer o exame de corpo de delito, já que a lesão pode desaparecer com o tempo", aconselha.
Se o médico quebrar o sigilo sem a autorização da paciente, pode sofrer medidas legais.

Violência sexual

Foto: Reprodução Internet
Médicos que se deparam com casos de violência sexual devem ter uma conduta um pouco diferente.
"É importante ressaltar à paciente que ela conte a cronologia dos fatos, pois isso tem relação direta com a profilaxia de hepatite, HIV, sífilis, além da própria contracepção de emergência, que é feita idealmente em até 72 horas do ocorrido", explica o Dr. Malavasi.
Tanto no exame geral quanto no ginecológico, é imprescindível que o médico descreva detalhadamente todas as lesões e, na ausência delas, informe que não foram encontradas lesões.
O Dr. Malavasi explica que há um problema com a ordem em que os exames são realizados. Segundo ele, o ideal é que, em casos de violência sexual, o corpo de delito e o exame ginecológico sejam feitos na mesma hora, no intuito de não provocar mais desconforto em uma paciente que enfrentou uma violência recentemente.
O especialista diz que, quando o exame ginecológico é feito antes do pericial, há risco de perder materiais biológicos importantes e que são usados na investigação criminal. No entanto, quando a paciente passa primeiro pelo pericial, o tempo para as profilaxias emergenciais fica reduzido, já que cada hora conta para a eficácia dos métodos. O ideal, portanto, é que seja um exame único, com a presença do ginecologista e do médico legista. Esse esquema, no entanto, ainda não é realidade na maioria dos hospitais brasileiros.
Se a paciente procurou primeiro o serviço ginecológico, é importante que o médico a oriente a ir imediatamente depois fazer boletim de ocorrência e exame de corpo de delito no Instituto Médico Legal (IML).

Lei ampara quando a violência é com menor de idade

Se o médico tem suspeita de que a criança ou adolescente que está à sua frente sofreu violência doméstica, deve seguir todo o procedimento de uma consulta padrão, com o exame físico.
"A orientação é que se faça todo o exame físico e se preencha o prontuário detalhadamente com todos os graus das lesões, as informações sobre essa suspeita, e deixe arquivado, pois posteriormente pode haver um pedido judicial para que esses dados sejam liberados", explica o presidente do Cremesp.
Paralelamente a isso, a orientação é comunicar o caso – ou o indício – ao conselho tutelar.
"Nesse caso não há quebra do sigilo médico, já que há exceção quando é por justa causa ou dever legal. O médico, então, está amparado para comunicar a autoridade competente, para que esta tome as medidas cabíveis", orienta o Dr. Camarim.

Fonte: Medscape
por: Elioenai Paes

Nenhum comentário:

Postar um comentário