quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Sob Pressão: SUS é sucesso em série de TV

Abandono de idosos foi um dos temas abordados pela série. Na foto, Marjorie Estiano e Emiliano Queiroz - Imagem: cortesia Rede Globo
Ninguém poderia imaginar, dois meses atrás, que uma série de TV sobre o dia a dia em um pronto-socorro do Sistema Único de Saúde (SUS), exposta em todas as suas carências e virtudes, poderia ser um sucesso de crítica e de público. O sucesso de Sob Pressão surpreendeu produtores, roteiristas, atores, e a própria Rede Globo, que já prepara uma segunda temporada e faz planos para uma terceira.

Baseada em dados do Ibope mostrando 27,4% dos aparelhos de TV ligados no horário das 22h30 às terças-feiras, a Globo estima que 38 milhões de pessoas acompanham cada episódio da série. E muitos desses espectadores são usuários e profissionais de várias áreas do sistema, que reivindicam a própria representação na série por meio de mensagens e e-mails. Enfermeiras, assistentes sociais, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, psicólogos, médicos de família, todos querem se ver em Sob Pressão. O SUS se viu na TV, com seus corredores apinhados, com sua falta de material, mas também, e principalmente, como o SUS que funciona apesar dos pesares. Do outro lado, os brasileiros também se viram representados em suas dores físicas e dramas pessoais.

Coprodução da Globo com a Conspiração Filmes, do diretor Andrucha Waddington, a série foi inspirada pelo livro Sob Pressão – a Rotina de Guerra de um Médico Brasileiro, do Dr. Márcio Maranhão, cirurgião torácico.

"Escrevi o livro em 2014, também como forma de desabafo. Nós, médicos, somos a face visível do SUS, e muitas vezes levamos a culpa pela gestão ruim, o que me deixa indignado e inconformado", diz o Dr. Maranhão. Com 23 anos de experiência, chefe do Serviço de Cirurgia Torácica do Hospital da Força Aérea do Galeão, e atuando também na iniciativa privada, o Dr. Marcio Maranhão é um ferrenho defensor do SUS.

"A percepção do sistema é muito ruim, até porque o SUS é desigual. A realidade do SUS de São Paulo, por exemplo, é bem diferente da do Nordeste, e muitas vezes é diferente dentro da mesma cidade. Vale o mesmo para os médicos que atuam no sistema: você tem aqueles profissionais que não cumprem horário, e aqueles que tiram dinheiro do próprio bolso para comprar material ou pagar a passagem de ônibus para o paciente voltar para casa", afirma.

De acordo com o Dr. Maranhão, por causa dessa percepção ruim, muitas vezes a população se esquece dos programas exitosos, como o de atendimento à aids, as campanhas de vacinação, e a existência de instituições de ponta.

"Nós precisamos discutir a saúde no País, porque ninguém está satisfeito nem com a saúde pública, nem com a complementar, e precisamos saber que saúde queremos e podemos ter. Trinta anos depois da Constituição, ainda estamos debatendo o acesso à saúde, quando o resto do mundo já está discutindo resultados", afirma.
 Sob Pressão aposta num misto de realismo e de histórias de vida de médicos e pacientes. A série é gravada numa ala desativada do Hospital Nossa Senhora das Dores, em Cascadura, no Rio, os equipamentos médicos são reais e alugados, e foram escolhidos com a ajuda de duas profissionais de saúde. O Dr. Márcio Maranhão coordena a equipe médica que dá consultoria e apoio aos atores durante as gravações.

"Tivemos apoio do Dr. Márcio durante toda a preparação e a gravação, e isso foi fundamental", conta a atriz Marjorie Estiano, que vive na série a cirurgiã vascular Carolina.

"Estivemos em alguns hospitais, como o Miguel Couto, assistimos a cirurgias, colhemos depoimentos, e isso foi bastante impactante, tanto para desmitificar como para entender o corpo humano e o trabalho do médico", conta a atriz, que nunca teve grande contato com a área médica, exceto pelas visitas ao oftalmologista, já que ela tem hipermetropia desde criança.

"Eu tenho uma saúde de ferro desde a infância, e minha mãe nos tratava com homeopatia, fitoterápicos e remédios naturais. Nem amigos médicos eu tenho", disse a atriz em entrevista ao Medscape.

Para a Marjorie, nada foi mais desafiador para interpretar o papel do que a parte técnica, o manuseio correto dos instrumentos, a relação com equipamentos em um centro cirúrgico, e a destreza dos movimentos.

"Os olhos do médico não veem a mesma coisa que um leigo. Tudo o que ele está vendo significa alguma coisa, tem um nome... Mas em todas as cenas de cirurgia ou atendimento tinha pelo menos um membro da equipe médica para auxiliar. Eram as cenas que mais me preocupavam. Se não passássemos credibilidade como médicos, nada faria sentido. É diferente quando a profissão que você representa não exige tanto conhecimento técnico ou não tem tanto enfoque na trama", reconhece a atriz.

Já o ator Tatsu Carvalho, que interpreta o neurocirurgião Rafael, conta que, além de ter amigos médicos, sempre admirou a profissão. Para se preparar para o papel, Tatsu pesquisou, participou de workshops e assistiu a uma cirurgia, experiência que considerou importante para observar a movimentação dos médicos no centro cirúrgico.

"Fomos aprendendo o básico, e o mais difícil para mim foi aprender a dar pontos. Sem o auxílio da equipe médica nas gravações seria impossível. Eles estavam ali ajudando sempre", disse o ator ao Medscape.

Bem-humorado, o ator Stepan Nercessian, que interpreta Samuel, o administrador do hospital, conta que sempre se tornou amigo dos próprios médicos porque "é sempre bom ter uma boa relação com Deus no Céu e com os doutores na Terra". Em entrevista ao Medscape, Necerssian reconhece ter escapado dos workshops médicos.

"Sei que os atores ralaram muito. O resultado é impressionante. Nós temos consciência de que, além do público leigo, muitos profissionais estão assistindo à série, e eles não perdoam equívocos. Mas temos recebido muitos elogios dos doutores da vida real. Isso é bom demais. Já falei pro Julio Andrade e pra Marjorie Estiano que se eu passar mal algum dia nas gravações, quero ser atendido por eles", brinca.

Na série, Julio Andrade interpreta um dos protagonistas, o cirurgião-chefe Evandro, misto de Dr. House e McGyver, que contorna a falta crônica de equipamentos com muita improvisação. Como House, ele se tornou dependente de medicamentos desde a morte da mulher. É viciado em trabalho e tem como lema "no meu plantão ninguém morre". Andrade tem sido tão convincente que já foi parado na rua por pessoas que lhe perguntam sobre os próprios problemas de saúde.

Um evento que discutiu a série na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo em agosto serviu de termômetro para as polêmicas surgidas com a série, inclusive a extrema desconfiança política em relação à emissora. Na abertura de perguntas para o público, pelo menos três perguntas dirigidas ao Dr. Márcio Maranhão e ao roteirista Márcio Alemão eram de pessoas que veem na série uma campanha da emissora para mostrar as mazelas do sistema e colocar a derradeira pá de cal no SUS.

"Nada mais distante da realidade. Aliás, basta ver a série para perceber que não se trata disso. Temos recebido cartas e mensagens de médicos e pacientes do SUS contando suas histórias, e que vão servir de base para novos episódios", diz Alemão.

A emissora tem recebido enxurradas de cartas de profissionais da enfermagem, que reclamam do pouco destaque dado a trabalho desses profissionais na série. "Não temos intenção de deixar ninguém de fora nas várias categorias que atuam no SUS," promete Alemão.

Jorge Furtado, que cursou quatro anos de Medicina antes de se dedicar à dramaturgia, assina o roteiro ao lado de Lucas Paraizo, Antonio Prata, e o já mencionado Márcio Alemão.

"Estamos felizes com o resultado porque conseguimos unir entretenimento e responsabilidade social", afirma o Dr. Márcio Maranhão, que ainda tenta conciliar a vida de médico com as novas demandas trazidas pelo sucesso do livro e da série.

As histórias pessoais de médicos e pacientes que aparecem na emergência são outro destaque da série, que já abordou desde temas como aids, conflitos entre fé e ciência, violência doméstica, e até a situação de abandono dos idosos: em um dos arcos iniciais da temporada, um idoso interpretado por Emiliano Queiroz, vivia sob o vão da escada do hospital, com medo de sair dali e perder a própria maca. Os episódios sempre terminam com uma mensagem importante de saúde, de doação de sangue à prevenção de doenças sexualmente transmissíveis.

"Eu estou descobrindo o poder da dramaturgia. No dia seguinte ao episódio que tratava de morte cerebral e doação de órgãos, 11 mil pessoas buscaram informações sobre esses temas", diz o Dr. Maranhão. "Quem sabe a série consiga mostrar, como diz a professora Ligia Bahia, que o SUS não tem solução: ele é a solução", questiona.

por Ruth Helena Bellinghini
Medscape

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