sexta-feira, 21 de abril de 2017

Estudo em camundongos mostra que imunidade contra dengue piora sintomas de zika

Foto: Reprodução
Desde que o Zika começou a se expandir globalmente a comunidade médica se pergunta quais seriam as consequências de coinfecções com outros flavivírus. Nesta semana, as perguntas começaram a ser respondidas com um trabalho publicado no periódico Science[1], mostrando evidências de que a imunidade à dengue poderia aumentar a infecção por Zika. As evidências poderiam explicar as manifestações graves do surto de zika no Brasil, como microcefalia e casos de Síndrome de Guillan-Barré. Para os especialistas consultados pelo Medscape, esta nova informação pode alterar as recomendações da vacina contra o dengue. Pesquisadores da Icahn School of Medicine at Mount Sinai, em Nova York, inocularam camundongos com plasma de pacientes infectados pelos vírus da dengue e da febre do Nilo ocidental, e posteriormente os expuseram ao Zika. O resultado foi maior morbidade e mortalidade, incluindo febre, viremia, e alta carga viral em medula espinhal e testículos.

"Nossos dados in vivo sugerem que a estimulação dependente de anticorpos (na sigla em inglês, ADE) induzida por reação cruzada com os outros anticorpos exacerba a viremia do ZIKV, o que pode levar a uma dispersão mais eficiente na medula espinhal e nos testículos. Este estudo reporta a primeira análise da associação do ZIKV com o aumento de doença por plasma humano de indivíduos com dengue e febre do Nilo ocidental," reportam os autores.
Mas a carga de IgG presente nas amostras fez diferença. Susana Bardina e colaboradores transferiram três doses diferentes de anticorpos humanos de 141 indivíduos com dengue e 146 infectados com o vírus da febre do Nilo ocidental em camundongos modificados geneticamente para serem suscetíveis a flavivírus, e depois os expuseram ao ZIKV. Os camundongos controle, sem anticorpos humanos, sobreviveram em maior proporção ao Zika. Também foi constatado que altas doses de anticorpos contra dengue protegeram contra o ZIKV. No entanto, doses menores foram correlacionadas com infecção grave: apenas 21% dos camundongos inoculados com baixas quantidades de anticorpos contra dengue sobreviveram à infecção por Zika.

O fato de os desfechos variarem de acordo com a titulação de anticorpos humanos "torna o resultado ainda mais significativo", disse em entrevista ao Medscape uma das referências em pesquisa do Zika no Brasil, Pierre Schatzmann Peron. "Uma pessoa que se infectou com dengue três ou quatro anos atrás, vai ter uma baixa quantidade de anticorpos circulando no corpo durante vários anos," continuou o pesquisador, que é professor-assistente do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo.



Na avaliação de Schatzmann Peron, que não participou da investigação mas está desenvolvendo pesquisas muito semelhantes, trata-se de um trabalho muito relevante por apresentar evidências sólidas de que a presença de anticorpos contra dengue em baixos volumes pode piorar a infecção pelo Zika. "Piorar significa elevação da viremia e da carga viral em determinados tecidos. O estudo avalia o testículo, um tecido que alberga o vírus. E na minha opinião a transmissão sexual é um tipo de transmissão que provavelmente está subestimada porque é de difícil detecção".

O efeito de amplificação causado pelos anticorpos contra dengue também facilita a entrada do ZIKV na medula espinhal, em vez de no cérebro. "Isso pode ser algo do camundongo," especulou Schatzmann Peron. "Em humanos, a infecção da medula espinhal se dá de forma menos frequente do que no cérebro".

"É um trabalho extremamente relevante", opinou o Dr. Artur Timerman, presidente da Sociedade Brasileira de Dengue e Arboviroses. "Existem relatos de formas de zika mais grave, mas mesmo assim é uma doença mais benigna e leve que a dengue. O grande problema é a transmissão transplacentária, que não foi objeto do estudo, mas há evidências indiretas nesse sentido. Num trabalho da Dra. Patrícia Brasil, do Rio[2], de 48 mulheres que tiveram ZIKV comprovado por PCR durante a gravidez, cerca de 26 transmitiram para o feto. Dessas 26, 22 tinham anticorpo contra dengue. Das que não transmitiram, só duas tinham anticorpos contra dengue".
A literatura mostra que após ter dengue, o paciente estará imunizado contra este sorotipo específico para o resto da vida. Se posteriormente ele se infectar por outro sorotipo, terá uma probabilidade maior de complicações. E na estimulação dependente de anticorpos, "quando os anticorpos existentes não conseguem neutralizar totalmente a infecção viral, eles deixam o organismo mais suscetível a fenômenos inflamatórios mais intensos, que levam a sintomas mais exuberantes" explicou o Dr. Timerman.

Nos adultos humanos a tendência é a infecção por Zika produzir uma doença relativamente benigna, o que, na opinião de Schatzmann Peron, não se trata de uma contradição, já que doença mais grave não significa que o paciente vai ficar pior, "é apenas uma biologia de Zika diferente. A quantidade de vírus que o indivíduo vai ter é maior, porque o ZIKV vai entrar na célula e replicar mais cedo e fazer cargas virais maiores. Mas talvez a resposta do paciente dê conta."

"Nossos resultados sugerem que a imunidade persistente a dengue pode ter contribuído para a rápida distribuição de ZIKV nas Américas, possivelmente associada a maior viremia e sintomas clínicos, incluindo microcefalia," concluem os autores.
Adolfo García-Sastre
"Ainda não sabemos o efeito sobre o feto," reconheceu um dos participantes do estudo, o espanhol Adolfo García-Sastre, professor da Icahn School of Medicine, em entrevista ao Medscape. "Nossos próximos estudos serão em camundongos fêmeas prenhes. Agora é importante também que sejam feitos estudos epidemiológicos em humanos, para comprovar que a imunidade contra dengue predispõe a uma doença de zika mais grave."
O estudo trouxe também novas informações sobre a biologia da infecção. "Ela tem importância clínica", destacou Schatzmann Peron, "pois mostrou que o receptor que se adere no vírus Zika é o FcgR."
Imagem: divulgação Icahn School of Medicine at Mount Sinai
"Entendendo esse processo pode-se pensar em como evitar as consequências da infecção em grávidas usando anticorpos que bloqueiem esta molécula. Mas existe uma família de receptores que se chama FCRN que está presente na placenta para transportar os anticorpos da mãe ao feto. Será que a FCRN também faz isso, ou seja será que o feto também sofre mais com o ZIKV porque transporta anticorpos da mãe grudados no vírus?" questionou ele.
Implicações na vacinação contra dengue

A possível interação do ZIKV com a vacina da dengue já foi abordada anteriorment pelo Medscape, e o novo trabalho indica que os anticorpos causados pela vacinação poderiam potencialmente levar à infecção aumentada em indivíduos posteriormente expostos ao Zika. "Esse trabalho vai causar algum furor, disse Schatzmann Peron, "Alguém deveria ter testado antes se a vacinação para dengue poderia produzir este tipo de fenômeno. Por este trabalho, pode-se inferir que sim. Frente à vacina, o organismo produz um nível de anticorpos baixo, que é justamente o problema".

A diretriz da Sociedade Brasileira de Dengue e Arboviroses é evitar a vacina contra dengue em mulheres em idade fértil até que os efeitos desta imunização sejam melhor estudados. "Tínhamos dúvidas, e este trabalho corrobora nossa inferência teórica, reforça mais essa suposição", disse o Dr. Timerman.

García-Sastre é de opinião semelhante: "Nas áreas com circulação de ZIKV o uso de vacinas contra dengue deve ser feito com precaução, devido à possibilidade de que anticorpos contra dengue possam piorar uma posterior infecção por Zika. Nossas pesquisas em camundongos sugerem que isso pode acontecer, embora ainda não tenha sido demonstrado em humanos."
Referências
Bardina S, Bunduc P, Tripathi S et al. Enhancement of Zika virus pathogenesis by preexisting antiflavivirus immunity. Science. 2017:eaal4365. doi:10.1126/science.aal4365.
 
Brasil P, Pereira J, Moreira M et al. Zika Virus Infection in Pregnant Women in Rio de Janeiro. New England Journal of Medicine. 2016;375(24):2321-2334. doi:10.1056/nejmoa1602412.
Fonte: Medscape

Adolfo García-Sastre
Imagem: divulgação Icahn School of Medicine at Mount Sinai

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